quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A igreja deveria cantar mais os salmos

Lucas G. Freire

Digam o que quiserem a respeito de como solucionar os problemas da igreja nos nossos dias, mas se “um retorno à Palavra” não for incluído na lista de remédios, toda tentativa de reforma será vazia de efeito. Boa parte do caos em que a igreja brasileira se encontra diz respeito à entrada de heresias perniciosas que ferem a confissão da igreja histórica e que atacam frontalmente a doutrina apostólica ensinada pelos nossos pais. E boa parte desse ingresso de elementos estranhos tem sido veiculada por meio da música. Assim, voltar a cantar a palavra de Deus será uma parte extremamente relevante da reforma da igreja, se de fato queremos uma igreja consciente de seus defeitos e ansiosa por consertá-los. Será bom, portanto, que os salmos passem a fazer parte da linguagem cotidiana da igreja da mesma forma que no passado.

Os salmos são os “cânticos do Senhor” (Sl 137.4; 1Cr 25.7). Alguns salmos, além de evidenciarem isso, também estabelecem que o canto dos salmos é uma ordenança divina (Sl 98.5; Sl 105.2). O livro dos Salmos, como o próprio nome original diz, é o “livro dos louvores” do povo de Deus. Assim, podemos concluir com o pastor batista Malcolm Watts que “a intenção divina foi agrupar salmos destinados ao uso regular e permanente na igreja de Deus” (“God’s Hymnbook for the Christian Church”, p.10). Os salmos também figuram na boca de personagens do Novo Testamento. Temos o bom exemplo de Jesus Cristo, recitando salmos durante o seu suplício na cruz (compare o Salmo 22.1 e Mateus 27.46) e cantando salmos na última ceia com os discípulos (Mt 26.30; Mc 14.26). Aliás, ele jamais faria isso com hinos e “corinhos” repletos de erros doutrinários! Em mais de uma ocasião ele recomenda o uso comunitário dos salmos como uma forma de circular a “palavra de Cristo” no seio da igreja.

Comentando essa ordem de Paulo, autores de diversas linhas teológicas e em diversos períodos históricos entenderam que “hinos e cânticos” também se referem ao saltério.

Adicione a isso o fato de Deus ter inspirado um livro inteiro de cânticos e nada parecido com isso durante a era do Novo Testamento: com certeza, o cântico dos salmos permanece uma ordenança válida tanto para a igreja antiga como para a nova. Foi exatamente dessa forma que a igreja histórica (representada por Agostinho e tantos outros) entendeu o cântico dos salmos, a ponto de ter proibido por um bom tempo qualquer cântico não-inspirado. Conforme o hinologista Cecil Northcott explica, “por conta do preconceito da igreja com relação ao louvor não-escriturístico, [...] não foi até o final do século 4 que o cântico de hinos começou a ser praticado nas igrejas” (“Hymns in Christian Worship”, p.19).

A Reforma trouxe a palavra de Deus de volta para a igreja, e isso não foi diferente no louvor. Lutero tinha os salmos em alta conta, tendo parafraseado e expandido diversos deles. Sua expansão mais conhecida é o hino “Castelo Forte”, ainda hoje entoado por diversas comunidades cristãs por todo o mundo. Reformador ainda mais preocupado em colocar os salmos na boca do povo reformado foi João Calvino (1509-1564). Calvino foi atrás dos melhores músicos da época (como Louis Bourgeois e Claude Goudimel) e de bons poetas (Clement Marot e o pastor Teodoro Beza) a fim de proporcionar para o povo de língua francesa um saltério que fosse, ao mesmo tempo, adequado ao canto congregacional e austeramente belo, para ser utilizado em particular e em público pela igreja.

Assim, com reavivamento e reforma, diversas igrejas passaram a retomar o apreço pelo saltério. Porém, foram os puritanos do século 17 que mais enfatizaram a salmodia depois da época de Calvino, tendo cristalizado, na Confissão de Westminster, o “canto dos salmos com graça no coração” (Cap. 21) como parte imprescindível do culto público. Preocupados com a ignorância geral da população, os puritanos adotaram o “alinhamento” do canto: um líder cantaria uma linha para a congregação repetir, e assim por diante. Hoje o “alinhamento” poderia ser adotado no caso de nem todos terem acesso ao texto ou à melodia escolhida para o canto congregacional. Embora a maioria saiba ler, nem todos conhecem as melodias, e não há forma mais organizada de ensinar a igreja do que esta, por meio da qual a igreja toda pode participar do canto desde o começo, e tudo isso com ordem. Por isso, o desconhecimento musical não seria obstáculo para (re)introduzir o canto dos salmos no Brasil.

Pode-se afirmar que uma igreja obediente é abençoada. Portanto, trazer a palavra de Deus de volta ao canto congregacional em cumprimento a sua ordenança é um passo promissor rumo a uma igreja mais bíblica e espiritualmente saudável. Os salmos possuem um equilíbrio temático pouco encontrado em outras coletâneas de canto congregacional. Possuem uma linguagem pouco encontrada na música e na oração evangélica contemporânea. São excelentes guias de oração e veículos para o ensino de doutrinas. Falam acerca de Jesus Cristo de um modo bastante especial (Lc 24.44). Falam das principais doutrinas cristãs.

Expressam sentimentos tanto individuais como coletivos. O texto dos salmos pode ser pregado expositivamente no culto público e o povo pode ser instruído dessa forma especial a respeito do conteúdo daquilo que canta, a fim de não tomar o nome de Deus em vão. O mesmo tipo de instrução não existe para material não-inspirado de canto.

Em nosso país, a história do uso dos salmos segue o mesmo padrão triste do resto do mundo e é praticamente impossível encontrar salmos metrificados nos hinários brasileiros (embora haja esporadicamente um ou outro). Por outro lado, existem grupos inteiros de igrejas que entoam com fervor os salmos à maneira reformada, com melodias antigas ou contemporâneas que sejam dignas de uso no culto. Voltar a cantar os salmos não é retrocesso, e sim uma retomada de um padrão bíblico no canto e no culto da igreja.

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Lucas G. Freire é mestre em relações internacionais, doutorando em política, é membro da Comissão Brasileira de Salmodia (CBS). http://www.salmodia.wordpress.com/